quarta-feira, 2 de novembro de 2011

De novo, sobre inferno


Castigo terrível enviou Deus sobre os soldados do exército dos filisteus como punição por haverem roubado aquilo que de mais sagrado havia para o povo escolhido, a arca onde estavam guardadas as tábuas com os dez mandamentos. O castigo terrível foi que todos os soldados filisteus foram atacados de hemorróidas. E diz o texto que o seu sofrimento era tão grande que os seus gemidos eram ouvidos de muito longe (I Samuel 5.12). Pois, se eu fosse Deus, enviaria praga parecida contra todos os que espalham o boato de que ele tem uma câmara de torturas particular, para seu deleite eterno, chamada inferno. Não posso imaginar nada mais horrendo que se possa falar contra Deus, pois é inimaginável que um Deus de amor castigue com sofrimentos eternos pecados que foram cometidos no tempo. E esses maledicentes ainda justificam seus boatos dizendo que Deus faz isso por ser justo, sem se dar conta de que a justiça divina é aquilo que Deus faz para curar a sua criação de qualquer tipo de sofrimento. É Jesus que diz: “Se vós, sendo maus, sabeis dar presentes bons aos vossos filhos, quanto mais Deus!“

Os meus argumentos não foram suficientes, e houve aqueles que me acusaram de heresia, por não acreditar no que está dito nos textos sagrados. Argumentam: “Não foi o próprio Jesus que contou a parábola do rico e do Lázaro, o Lázaro indo para o céu depois da morte e o rico indo para o inferno? Se Jesus falou, há de se acreditar.“

Pois eu acredito. Acredito nas parábolas como acredito nos poemas. Poemas e parábolas são metáforas que falam sobre os cenários da alma humana. Um psicanalista diria: são sonhos que lançam luz nos porões escuros do inconsciente. Lembro-me de uma mulher que me relatou que, num sonho, ela tinha um furúnculo dentro da cabeça, bem ao lado do ouvido, o furúnculo latejava e doía muito. Até que, repentinamente, o furúnculo começou a vazar pelo ouvido. E o que saía pelo ouvido - pasmem - não era pus. Saíam sementes de maracujá! Doido seria eu se interpretasse o sonho literalmente e enviasse a mulher a um neurocirurgião para extrair o dito furúnculo. Esse sonho foi uma estória (revisor, por favor, não corrija “estória“ para “história!“) por meio da qual o inconsciente dela lhe revelava, de maneira gentil e bem humorada, um sofrimento e um prazer que ela se recusava conscientemente a compreender. É claro que não havia furúnculo algum dentro da sua cabeça. O furúnculo estava dentro da sua alma que tratava de expelir as sementes de maracujá? (O que eram elas, as sementes de maracujá? Não dá para explicar agora.) Todo mundo sabe a estória de Davi, rei-poeta, que seduziu Betsebá, mulher de um dos seus generais, engravidando-a. Para esconder o seu pecado mandou matar Urias, marido de Betsebá. Natan, profeta, dirigiu-se ao rei e lhe contou esta parábola: “Um homem tinha mil ovelhas. O seu vizinho tinha uma única ovelha, que ele muito amava. Pois o que tinha mil ovelhas, querendo comer um churrasco, roubou e matou a única ovelha do seu vizinho pobre.“ Contada a parábola o profeta perguntou ao rei: “Que castigo merece esse homem?“ Davi respondeu: “Que esse homem seja punido com a morte“. Ao que o profeta lhe disse: “Esse homem és tu.“ O rico, dono de mil ovelhas nunca existiu. E nem existiu o pobre, dono de uma ovelha. O profeta falou por meio de metáforas. Parábolas não têm o propósito dar informações verdadeiras do mundo de fora. O seu objetivo é revelar o mundo de dentro.

Pois o mesmo é para ser dito das parábolas de Jesus. O filho pródigo, o filho modelo e o pai bondoso nunca existiram. E nunca existiu também a mulher que perdeu a moeda. E nem o bom samaritano e o pobre espancado pelos ladrões. Essas são estórias, nunca aconteceram. Nunca aconteceram porque acontecem sempre, na alma da gente. Quem acredita que elas aconteceram de fato, em algum lugar do passado, não está percebendo que elas falam sobre o que está acontecendo aqui, no presente.

Se vão acreditar nas parábolas literalmente, então preparem-se: Jesus contou uma parábola de um homem que ia se casar com dez virgens, numa mesma noite (Mateus 25:1-12). Se essa parábola for interpretada da mesma forma como foi interpretada a parábola do rico e do Lázaro, literalmente, então teremos de chegar à conclusão de que o Reino dos Céus é um lugar machista, onde os homens se casam com dez mulheres numa mesma noite... E, se isso é verdadeiro para o reino dos céus, tem de ser verdadeiro também para a terra, pois está dito no Pai-Nosso, “assim na terra como nos céus...“

A parábola do rico e do Lázaro não fala sobre um lugar exterior chamado inferno. Ela fala do fogo que jamais se acaba, dentro da alma, chamado remorso. O que o rico desejava era que Lázaro molhasse sua língua, no seu sofrimento. Ele desejava ser perdoado. Mas Lázaro já havia morrido. E ele, Rico, estava condenado a sofrer a dor do seu remorso.